Vida em Movimento – T3:E3 – Infância e Projeto Brincar

Brincar não é apenas algo do que as crianças se ocupam enquanto esperam para serem adultas. Ao contrário! Longe de ser apenas uma forma de passar o tempo, a brincadeira é fundamental para o próprio desenvolvimento dos pequenos. A infância e a importância do brincar são o tema do terceiro episódio (da terceira temporada) do Vida em Movimento, o podcast da Fundação Grupo Volkswagen. Ao longo do programa, descobrimos como o brincar desenvolve as dimensões física, cognitiva e afetiva das crianças. São nesses momentos que surge a cultura lúdica: imaginar, expressar, se relacionar e explorar. Mas sabiam que nem sempre as crianças tiveram o direito de brincar? Na Idade Média, elas eram vistas como um adulto em miniatura. Trabalhavam como eles e até usavam as mesmas roupas. Foi só no Renascimento, já no século 18, que foram dados os primeiros passos para a separação do adulto da criança. Aqui no Brasil, esse movimento se fortaleceu a partir da redemocratização, no começo dos anos 1990. E um dos exemplos é a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que os define como sujeitos de direitos, em condição especial de desenvolvimento. A importância da criança ser criança e do brincar é a premissa do Projeto Brincar, que a Fundação Grupo Volkswagen realiza em parceria com a Mais Diferenças e a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. O episódio convidou a Pedagoga e Coordenadora Geral da Mais Diferença para falar sobre a brincadeira, as particularidades da infância e sobre a escola inclusiva, voltada para todos os pequenos, com e sem deficiência. Aperte o play e confira!
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Confira a transcrição do áudio

VINHETA DE ABERTURA

 

FUNDO MUSIAL

 

LOCUÇÃO: Ludmila Vilar

 

Olá a todas e todos. Bem-vindos ao terceiro episódio da terceira temporada do Vida em Movimento, o podcast da Fundação Grupo Volkswagen. Eu sou Ludmila Vilar e hoje o assunto é infância. Em outubro, no dia 12, a gente comemora o Dia das Crianças. E já vale esclarecer que o feriado nacional não tem a ver com os pequenos. É que nesse dia é também é comemorado o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Mas, por que então o dia 12 de outubro, para se comemorar o Dia das Crianças? A data foi escolhida por decreto! Em 1924, durante a Primeira República. No entanto, demorou para a data ficar popular. Foi só a partir da década de 50, ou seja, 30 anos depois. Comemorar o Dia das Crianças não é uma exclusividade brasileira. O mundo todo reserva uma data para elas. A ONU, inclusive, estipulou o dia 20 de novembro como o Dia Universal das Crianças.

Cada cultura a seu modo, cada canto do mundo em uma data diferente. Mas ainda bem que se comemora o Dia das Crianças. Sabe por quê? Porque nem sempre foi assim. Aliás, ao contrário. Até mais ou menos por volta do século 12, não havia sequer uma concepção sobre o que era infância. E muito menos algo específico voltado para essa fase da nossa vida. A palavra infância vem do latim INFANTIA. E significa “incapacidade de falar”.  Ou seja, a crença era de que as crianças não tinham habilidade de expressar seus desejos e seus sentimentos. Ela era como um “serzinho” incógnito, sem um lugar na sociedade. Na Idade Média, a criança era vista, na verdade, como um adulto em miniatura. Trabalhava como os adultos. Usava as mesmas roupas que os adultos. E logo que passava o período de amamentação. A criança já era encaminhada para locais onde aprendia a servir e a trabalhar.  Foi só no Renascimento, já no século 18, que foram dados os primeiros passos para a separação do adulto da criança.

E isso se deu por meio do que? Adivinhem! Da escolarização! Antes, por não haver distinção entre idades, todos aprendiam da mesma maneira e sobre as mesmas temáticas. Foi a Igreja Católica que teve um papel fundamental para essa mudança. Ela associou a imagem das crianças a dos anjos. Ou seja, seres que refletem inocência e pureza. Com isso, a Igreja acabou meio que guiando as pessoas para uma postura de amar incondicionalmente e especialmente as crianças. Tornando assim a educação obrigatória. E, ao mesmo tempo, apresentando uma contraposição à indiferença que era vigente até então.  A partir do século 18, as crianças começaram a ser reconhecidas em suas particularidades. Passaram a ter, por exemplo, um quarto para elas, quando era possível Uma alimentação mais adequada.

E a ocupar um espaço seu no meio social. Assim nasceu a concepção de infância. Com o passar dos anos, os direitos das crianças foram ficando mais fortes. Em meados do século 19, por exemplo, na França, surgiu a ideia de que as crianças mereciam proteção especial. Primeiro no mundo do trabalho. E, mais tarde, com leis sobre o direito à educação. No contexto brasileiro, esse movimento se fortaleceu apenas a partir da redemocratização, ou seja, no começo dos anos 1990. E um dos exemplos desse fortalecimento foi a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o chamado ECA. que passa a ressaltar a importância da divisão das responsabilidades sobre a criança entre o Estado, a sociedade e a família.

Ou seja, todos passam a ser responsáveis pelo bem-estar dos pequenos. O documento foi criado pela Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990. E define as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos. Em condição especial de desenvolvimento. E que, por isso, demandam proteção integral e com prioridade. Seja por parte da família, da sociedade e do Estado. Infelizmente, há casos em que esses direitos ficam só no papel, a gente sabe. Mas termos “o papel”, acredite, já significa um grande avanço.

Imaginem só: até existir esse conceito moderno de infância a criança nem brincava! E hoje as brincadeiras são a primeira coisa que vem à mente quando se pensa nos pequenos. Ainda bem que é assim. Porque, além de divertido, brincar é muito importante. Sabem por quê? Porque a brincadeira desenvolve as dimensões física, cognitiva e afetiva das crianças. Ou seja, habilidades tanto do corpo quanto da mente. São nessas relações que surge a cultura lúdica. Que significa imaginar, expressar, se relacionar, explorar. Enfim, ser criança.

A brincadeira está no centro do processo educacional. É uma fase da vida que terá um impacto direto no comportamento futuro de cada um de nós. É nessa fase que a gente aprende a lidar com as dificuldades, com os obstáculos, limitações e diferenças. É com essa premissa que a Fundação Grupo Volkswagen realiza o Projeto Brincar. Uma parceria com a ONG Mais Diferenças e a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo A iniciativa aposta na Educação Infantil inclusiva como chave para transformar o mundo. E suas ações envolvem assessoria à gestão escolar, formação de educadores, acompanhamento pedagógico, produção de recursos pedagógicos acessíveis e ações de mobilização junto às comunidades escolares.

O projeto acontece desde 2017. E desde então vem fomentando a experimentação de práticas pedagógicas inclusivas. Além disso, incentiva a realização de brincadeiras que envolvam todas as crianças, com e sem deficiência. O Projeto Brincar também produz material sobre o tema. Publicações que reúnem uma ampla abordagem das temáticas tratadas. E indica como elas podem ser trabalhadas em sala de aula. Ou mesmo em casa, por pais e responsáveis. E olha a importância da brincadeira aí de novo! O projeto propõe o uso de jogos e atividades lúdicas como uma ferramenta pedagógica poderosa! Ou seja, não é só ter o intervalo para brincar.

A brincadeira é parte do processo de aprendizado. Acesse o site da Fundação, na aba materiais, e confira as publicações. Elas já registraram mais de 20 mil downloads só em 2021. Aliás, há outros números superinteressantes do projeto: Ele já formou mais de 13,3 mil profissionais. Já organizou cinco eventos online que juntos somaram mais de 9 mil visualizações. Foram formados mais de 2.600 educadores. E mais de 54 mil alunos, com ou sem deficiência, foram beneficiados diretamente pelo Projeto Brincar.

Além disso, mais de 11 mil professores impactados. E mais de 1.200 unidades educacionais estiveram envolvidas. São números muito bacanas quando se fala em educação. E não para por aí! Em 2021, o Projeto Brincar foi um dos cinco finalistas do Prêmio de Educação em Direitos Humanos Oscar Arnulfo Romero. E, antes disso, em 2020. A iniciativa recebeu o Zero Project Awards como uma das práticas de educação inclusiva mais inovadoras do mundo. O prêmio é importante porque identifica práticas e políticas inovadoras em acessibilidade em vários países. E está conectado com o Artigo 9 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

Para ajudar a gente a entender mais sobre o Projeto Brincar, convidamos a coordenação geral da Mais Diferenças, Carla Mauch, para um papo com a gente. Bem-vinda, Carla, prazer ter você aqui no Vida Em Movimento.

Carla Mauch – Olá a todas e todos. Eu que agradeço o convite, estou muito feliz de encontrarmos um espaço para conversar e compartilhar sobre as crianças, sobre infância, sobre o brincar.

Vida em Movimento – Para começar, conta pra gente: como surgiu a Mais Diferenças?

Carla Mauch – A Mais Diferença surgiu em 2005 com um grupo de profissionais, com e sem deficiência, que fazia uma defesa da inclusão de todas as pessoas com deficiência. Naquela época, a gente ainda não tinha algumas legislações como, por exemplo, o direito à Educação Inclusiva no Brasil, mas nós já percebíamos que as pessoas com deficiência, desde a primeiríssima infância até a terceira idade, tinham o direito de conviver e de estar em todos os espaços. Então, a partir daí a Mais Diferença começa a trabalhar muito com o poder público, com outras organizações não governamentais, com fundações privadas, como é o caso da Fundação Grupo Volkswagen, com empresas, para que a gente ampliasse o acesso das pessoas com deficiência. E nesse sentido a infância, as crianças, são um dos públicos que nós estamos mais atentas. Por 2 motivos principais: o primeiro é que nós sabemos que o processo de desenvolvimento nos primeiros anos de vida é muito importante. As crianças ainda estão em processo de maturação. E em segundo lugar, para que desde a primeira infância as crianças pudessem conviver com outras crianças com deficiência, aprendessem, ampliassem o seu repertório, entendendo que todos podem conviver e aprender uns com os outros.

Vida em Movimento – A gente sabe que a questão da escola inclusiva já esteve no centro de algumas polêmicas. Isso porque foi dito que crianças com deficiência não deveriam ficar na mesma sala de aulas que outras crianças. Como acabar com esse tipo de abordagem, que foca mais o problema do que a solução?

Carla Mauch – Em relação às pessoas com deficiências em especial a gente precisa mudar toda uma cultura. Porque por muito tempo e muitas vezes os educadores e as famílias, não é porque não tão comprometidos com a melhor alternativa e solução, é que sempre se falou que as pessoas com deficiência precisavam de um tratamento muito especial, que tinha que ser um profissional muito especial, como se essas crianças quase que não tivessem uma humanidade ou como tivesse que ser um ser muito diferente para lidar com elas. E a solução, ela vem muito junto com as próprias pessoas com deficiências, com as crianças. Elas inventam formas, elas vão nos ajudando, elas vão nos mostrando como elas têm possibilidades, como elas inventam sugestões e alternativas criativas. Mas para isso nós precisamos estar abertos, nós precisamos estar numa relação de empatia com o outro. Nós precisamos nos despir de preconceitos, nós precisamos olhar amorosamente pro outro. Nós precisamos olhar com uma perspectiva de igualdade de oportunidades.

Vida em Movimento – Como a Mais Diferenças atua para mudar opiniões como essa?

Carla Mauch – Por exemplo: o projeto Brincar, que é uma iniciativa da Fundação Grupo Volkswagen, tem uma série de estratégias articuladas. A primeira questão é: a gente precisa de tempo. Mudar cultura, mudar perspectivas leva tempo porque também precisa de uma mudança interna. A gente precisa formar educadores, famílias, a gente precisa formar outros profissionais. Nós precisamos sensibilizar a sociedade como um todo, nós precisamos produzir e compartilhar boas experiências. Pílulas do Brincar, por exemplo, que são ideias para ampliar o repertório dos profissionais e das famílias. A gente precisa ampliar os brinquedos e materiais acessíveis, mas às vezes a gente acha que precisa de um recurso muito grande. e nós trabalhamos produzindo brincadeiras inclusivas por exemplo, com materiais de baixo custo, onde toda e qualquer família, toda e qualquer escola pode inventar fórmulas de acolher todas as crianças. Nós também precisamos trabalhar com as incidências das políticas públicas, nós também precisamos explicar pros legisladores para que as leis sejam inclusivas, para também explicar o porquê que a gente está mudando tudo isso que por tanto tempo foi de uma outra forma. Imagine uma sala de crianças só com crianças cegas, quem é que vai ler o mundo das imagens? Vai ser só o professor? Agora, se eu tenho 20 crianças, cada uma trazendo a sua leitura e aquela criança cega pode ir aprendendo, imaginando do que só o olhar de uma professora contando o mundo para as outras crianças.

Vida em Movimento – Agora falando do ambiente familiar, o ambiente de dentro de casa, qual a melhor forma de ter uma atitude inclusiva com relação às crianças?

Carla Mauch – As famílias também podem e precisam olhar os seus filhos a partir de suas potencialidades e ir experimentando brincadeiras, por exemplo. Muitas vezes, a gente acha que as crianças com deficiência o mais importante é só o diagnóstico, o tratamento que elas precisam de fono [fonoaudiologia], de fisioterapia, de psicóloga, algumas crianças precisam, mas nem todas. Agora o que todas as crianças precisam é ser estimuladas. Então, as famílias precisam experimentar e garantir muito tempo de brincadeiras, muitas possibilidades. Então, eu até queria compartilhar, nós produzimos pro Projeto Brincar, um material que se chama “Brincando juntos – inspirações inclusivas para famílias”. Lá a gente traz várias sugestões. Então, por exemplo, eu posso pegar um lençol, eu posso fazer uma cabana e colocar que a gente vai brincar numa cabana. Essa cabana pode ter lanterna, se for uma criança com deficiência intelectual, ou mesmo com deficiência visual, eu posso colocar objetos táteis e eu vou explicando pra essa criança. O que eu tô sugerindo então é que a gente não precisa ter grandes brinquedos, às vezes os brinquedos são caros, mas a gente tem que tá com a criatividade e a gente tem que acreditar na potencialidade das crianças. Não tem nenhuma criança que não aprenda.

Vida em Movimento – E como saber quando os adultos podem se inserir nos momento de brincadeira dos pequenos e quando eles devem deixar a criança explorar sozinha?

Carla Mauch – Quando nós vamos falar no brincar, existem muitas formas de brincar. E a gente precisa aprender a equilibrar. Tem momentos que é muito importante a gente deixar as crianças brincarem sozinhas, entre elas. Nós vamos permitir que as crianças possam explorar sozinhas também. Claro que nós vamos garantir segurança, a gente vai ficar olhando às vezes de longe, até porque é bonito isso. E aí a gente também vai observando quais são as formas que as crianças resolvem, onde que elas estão avançando, onde que está mais difícil. Mas nós precisamos ter hora e muitas vezes estar juntos com as crianças, porque é importante a atenção do adulto. E o “tá junto” é tá junto de verdade. Não dá para eu tá junto, mas daqui olhando celular ou outra coisa. Nessa hora eu vou estar disponível inteiro porque as crianças percebem isso. A gente tem que oferecer experiências diversificadas de brincar para e com as crianças.

Vida em Movimento – Como você avalia o cenário da inclusão no Brasil? A gente ainda tem muito trabalho pela frente ainda?

Carla Mauch – Eu avalio que o cenário da inclusão ainda é um grande desafio no nosso país. Nós temos leis que garantem o direito de todas as  crianças, adolescentes e adultos, mas nós sabemos que uma lei para se transformar em realidade precisa de muito trabalho. Então, nós temos ainda muitos avanços no país, mas eu gosto de ser otimista. E eu sou uma profissional que tenho 52 anos de idade e eu comecei a trabalhar com pessoas com deficiência com 15. Quando eu comecei a trabalhar, ninguém entendia por que eu tinha escolhido essa questão, essa pauta, porque eu não tinha deficiência, não tinha ninguém na família… E eu sonhava e depois de algum tempo eu percebi o que era inclusão, como as crianças se desenvolviam. E eu sempre fui muito sonhadora, então de quando eu comecei a trabalhar pra agora eu percebo muitos avanços. Então, eu acho que a gente tem que caminhar com o que a gente já avançou. No Projeto Brincar, a gente tá na escola, a gente tá com as crianças, têm crianças com diferentes deficiências, têm crianças bolivianas, têm crianças haitianas, têm crianças que vieram da zona rural. E esse colorido de diversidade que a gente vê nas escolas a gente vê muita coisa legal acontecendo. A gente vê professoras fazendo trabalhos incríveis, então a gente tem podido viver e experienciar coisas muito bonitas. Então, temos um desafio enorme pela frente? Temos. Mas já avançamos. E eu queria convidar a cada uma das pessoas que tá assistindo o Vida em Movimento, que pudessem procurar experiências bonitas que vai encontrar muito e que também pudessem inventar belas experiências e compartilhar, que a gente perdesse o medo, que a gente pudesse ousar um pouco mais, que a gente pudesse olhar para qualquer pessoa buscando o que ela tem de bom, acreditando no potencial, dando oportunidades. O maior desafio das pessoas com deficiência é que elas sempre tiveram muito poucas oportunidades.

Vida em Movimento – Carla, muito obrigado por sua participação nesse episódio do Vida em Movimento.

Carla Mauch – Eu que agradeço, é uma alegria ter a Fundação Grupo Volkswagen como parceira, que coloque essa pauta. Nós precisamos ter muitos espaços como esse, nós precisamos multiplicar práticas positivas, e a gente acredita muito na conversa, no encontro… Porque a gente acredita que todos podem mudar um pouquinho e que todos são responsáveis. Vida longo ao Vida em Movimento e que possamos nos movimentar, que possamos sair dos nossos lugares confortáveis e que possamos ser empáticos com todas e todos.

Locutora – E assim terminamos esse episódio do Vida em Movimento. Um abraço e até a próxima.

Locutora – O podcast Vida em Movimento é uma realização da Fundação Grupo Volkswagen. Produção, pesquisa e roteiro: RPTCom e Fundação Grupo Volkswagen. Apresentação: Ludmila Vilar. Produção musical, gravação, edição e finalização: BANCA Comunicação.